quinta-feira, 7 de maio de 2009

Deuteronômio 28 aplicado à igreja

A aplicação de Dt. 28
O texto de Dt 28 que trata das bênçãos e maldições atreladas à obediência ou desobediência aos mandamentos do Senhor tem causado bastante confusão, não nas igrejas históricas e pentecostais clássicas
[1], mas naquelas famigeradas neopentecostais[2]. Com efeito, a confusão não decorre do texto per se, porquanto o texto em si é a Palavra infalível e inerrante de Deus. Pelo contrário a confusão advém dos intérpretes, e estes pertencem às igrejas neopentecostais.
Mas qual é a confusão? Pregadores neopentecostais têm insistido em que aquelas promessas registradas naquele capítulo aplicam-se a todos os indivíduos sem distinção.
Por exemplo, qualquer pessoa que guardar o mandamento do Senhor deverá ser bem-sucedida em tudo que fizer (28.8), deverá ter riquezas, de modo que não fará empréstimos, mas emprestará aos outros (28.12).
Por outro vértice, qualquer pessoa que não guardar o mandamento do Senhor deverá ser mal-sucedida em tudo que fizer (28.20), e não terá riquezas, de modo que tomará emprestado e não emprestará a ninguém (28.44). Enfim, só experimentará sofrimentos amiúdes (28.29).
Assim sendo, segundo essa forma – confusa – de interpretação, sempre haverá uma relação de causa e efeito entre coisas boas e ruins, ou seja, a bênção está ligada à obediência, ao passo que a maldição está atrelada ao pecado.
Consequentemente, qualquer crente que estiver atravessando períodos de crise financeira, familiar, física, etc., deverá se auto-examinar para verificar se não há algum pecado oculto.
Essa forma de interpretação, conhecida como Teologia da Prosperidade, tem causado confusões desastrosas na vida de um servo fiel ao Senhor Deus que esteja passando por crises. Ele poderá entrar em estado de obsessão e desespero, buscando um pecado em sua vida, que não existe, a fim de se livrar da famigerada maldição.
Frequentemente, houve-se falar de pessoas que, não achando um pecado em suas vidas, fabricam pecados, eliminando-os somente para se livrarem da maldição. Por exemplo, inventam pecados como comer um tipo de alimento, não tocar em um objeto amaldiçoado, não possuir um objeto suspeito, como quadro, escultura, etc..
Após se livrar daquilo que pensa ser pecado, mas na verdade não é, e continuar na crise, o desespero, medo e pânico se agravam ainda mais, até ao ponto de culminar na completa incredulidade e até apostasia da fé.
Os pregadores da prosperidade esquecem-se de que o próprio povo de Israel sofreu no Egito e teve falta de pão e água no deserto, mesmo não havendo qualquer pecado específico. Pelo contrário, Deus havia planejado muito tempo antes o sofrimento no Egito (Gn 15.13-16), e as provações no deserto faziam parte do plano de Deus (Dt 8.2-5).
Todavia, um personagem bíblico famoso calhou facilitando a exata compreensão desse texto. Se não fosse a vida de Jó, a interpretação desse texto seria difícil, porque realmente o texto impinge a relação de causalidade entre pecado e maldição, obediência e bênção. O texto de Dt 28, lido fora de seu contexto, parece indicar que todo o mal está ligado ao pecado ao passo que todo bem está atrelado à obediência.
A vida de Jó desmantela esse conceito simplista e não ensinado por Deus. Ele era o homem mais fiel de seu tempo, mas Deus, sim, o próprio Deus, permitiu que ele sofresse nas mãos de Satanás (Jó 1.1-2.13).
Os amigos de Jó – e que amigos! – acusavam Jó de ter pecado. E Jó, mesmo ciente de que era fiel, chegou a pensar que tinha pecado (7.20,21). Elifaz e os outros amigos de Jó insistiam na “teologia da prosperidade”, em que a bênção e maldição estão relacionadas com a obediência e o pecado, respectivamente (15.17-35).
Mas Jó rebatia essa tese infundada, preconizando sua fidelidade (cap. 31), e afirmando que os ímpios também são prósperos (cap. 21); mas ao pensar nisso, Jó ficava perturbado (21.6)!
Por fim, Deus rejeitou a tese – teologia da prosperidade – dos amigos de Jó (42.7,8).
Essa bela história facilita o entendimento de que não há uma relação absoluta entre bênção e obediência, maldição e pecado. Ou seja, mesmo que a obediência proporcione bênçãos na vida do cristão e que o pecado traga desgraças – isso é inegável – não podemos jamais dizer que toda crise é consequência do pecado, e que toda bênção é consequência da obediência. O livro de Jó facilita esse entendimento ao revelar que há certos males que não têm qualquer relação com pecado, o exemplo disso é a tribulação de Jó, que não tinha nenhuma relação com um pecado específico. O livro ainda fala que há certas bênçãos que não tinham relação com a obediência a Deus, como o caso de ímpios prósperos.
Não se pode olvidar que o livro de Dt 28 é uma ampliação e explicação da Aliança que Deus fez com Israel no monte Sinai (Ex 19.5; 24.8), cujo intermediador dessa aliança era Moisés. Essa aliança ou acordo envolvia Deus e povo, e foi mediada por Moisés. Essa aliança possuía as estipulações, deveres e obrigações do Rei, que é o próprio Deus, e do povo, que é a nação de Israel.
Portanto, nesse momento, já podemos concluir que o texto de Dt 28 não se aplica a cada servo de Deus individualmente, não obstante o uso do pronome definido singular ti, tu. Embora o texto de Dt 28 pareça tratar com indivíduos, usando expressões como “bênçãos virão sobre ti”, “virão sobre ti todas estas maldições, e te alcançarão”, o contexto de Dt 28 revela que o âmbito da bênção e maldição não é individual mas nacional. Isto é, o texto de Dt 28 se refere à nação, à coletividade, ao povo de Israel enquanto nação.
O v. 12 afirma que haveria empréstimo a “muitas nações”. O v. 8 fala que haveria bênção “na terra que te der o Senhor”, isto é na terra da nação de Israel. O v. 36 revela que haveria cativeiro em uma nação desconhecida. O v. 49-57 denota que uma nação seria usada para punir. Essa nação sitiaria as portas (v. 52). O fato de sitiar as portas indica que as cidades seriam conquistadas, apontando para a nação, a coletividade, pois naquela época as portas eram a entrada da cidade.
Ainda assim, alguns versículos de Dt. 28 utilizam o verbo e pronome no plural: v. 62, 63, 64.
Portanto, o uso de pronomes no singular é um estilo literário. Por exemplo, os dez mandamentos foram escritos no singular (não furtarás, matarás...) mas é um código dirigido à nação, ao povo.
Dessa forma, as bênçãos e maldições sobreviriam à nação, ao povo. E isso aconteceu de fato. A nação de Israel foi próspera nos dias de Davi e Salomão, porque foram obedientes aos mandamentos do Senhor. Mas quando se rebelaram contra o Senhor, experimentaram as maldições e sofreram nas mãos da nação da Assíria e Babilônia.
O texto de Dt 28 nunca significou desde o Antigo Testamento um escudo contra o sofrimento individual, nunca foi uma garantia contra as tribulações inerentes à vida depois do pecado de Adão e sofridas pelo cristão individual.
Pelo contrário, esse texto era uma chave para entender a história do povo de Deus no Antigo Testamento, de forma que a nação prosperava na medida da fidelidade, e sofria na medida da infedelidade.
O povo de Deus, sim, a coletividade, seria abençoado e distinguido dos demais povos. De modo que, a fidelidade do povo de Deus traria bênçãos, ao passo que a infidelidade traria maldições.

Aplicabilidade à Igreja
Creio que esse texto também se aplica à Igreja, enquanto corpo de Cristo, no sentido coletivo. De forma que uma Igreja fiel experimentará bênçãos, ao passo que uma igreja apóstata sofrerá.
No entanto, jamais podemos usar esse texto de forma absoluta, e estabelecer aquela relação de causalidade absoluta, com se toda bênção estivesse relacionada à obediência e maldição ao pecado.
A história da Igreja revela que a Igreja fiel recebeu bênçãos, mas também sofreu.
As cartas endereçadas às setes igrejas da Asia Menor denotam que a fidelidade traz bênçãos e que a desobediência traz tribulações. A igreja de Filadélfia seria preservada da hora da tentação que haveria de vir sobre o mundo (Ap 3.10), ao passo que a igreja de Tiatira seria punida pelo pecado (2.22,23). A punição da igreja de Tiatira serviria de testemunho de que Deus dá a cada um segundo as suas obras (2.23).
No entanto, para elucidar que não existe relação absoluta entre pecado e maldição, temos o exemplo da igreja de Esmirna, que mesmo não sendo repreendida por nada e sendo rica para com Deus, era pobre e sofreria tribulações (2.9,10).
Com vistas a quebrar completamente a relação absoluta de causalidade, verificamos que a igreja de Laodicéia era rica, mas não agradava a Deus.
Agora, o que uma igreja próspera deveria fazer? Usufruir as riquezas comprando carros novos, apartamentos no litoral, como vemos em algumas propagandas enganosas e pecaminosas veiculadas pela mídia que se diz evangélica, mas não é? Por certo a resposta é NÃO!
O próprio livro de Dt propõe uma forma de aplicar os recursos dados por Deus ao seu povo. O texto de Dt 15.7,8,11 ensina o povo a emprestar ao necessitado. Assim, os ricos deveriam suprir a falta dos pobres. A propósito, o v. 11 prenunciou que sempre haveria pobre na terra prometida. E, repisa-se, pobreza não tem uma relação necessária com o pecado. Basta relembrar a igreja de Esmirna, que era pobre, mas fiel a Deus.
O Senhor Jesus Cristo citou a passagem de Dt 15.11 ao dizer que sempre haverá pobres entre o povo de Deus. Porque um crente fiel é pobre e outro crente fiel é rico? Deus sabe, ele é soberano. Dt 29.29 deve calhar.
O apóstolo Paulo também propôs à Igreja de Corinto que auxiliasse os irmãos pobres de Jerusalém (1Co 16.2,3; 2Co 8.14,15).
Quiçá esse mesmo espírito de generosidade deveria haver por exemplo entre os crentes ricos de Laodicéia e os crentes pobres de Esmirna. Dessa forma, o corpo de Cristo gozaria as bênçãos do Senhor.
Com certeza haverá igrejas pobres e necessitadas para que as igrejas ricas e bastadas auxiliem-nas, suprindo as necessidades, e compartilhando as riquezas. De modo que a pobreza daquelas igrejas não terá necessariamente ligação com o pecado delas. Pelo contrário, poderá haver sim o pecado do egoísmo e avareza nas igrejas ricas por não auxiliarem as pobres.

Conclusão
Em poucas palavras e de forma simples, não simplista, podemos depreender que a fidelidade traz bênçãos e que a infidelidade traz maldições. Mas essa regra tem suas distintas e freqüentes exceções, pois não poucas vezes o fiel sofrerá ao passo que o infiel será próspero. Por que? A resposta é: Deus é soberano.
O povo de Deus, hoje chamado de Igreja, será abençoado à medida que for fiel a Deus e castigada na mesma proporção do pecado. No entanto, isso não quer dizer que indivíduos fiéis nunca sofrerão e que a Igreja fiel não será provada.

Não podemos olvidar que ajudar o próximo é uma forma bíblica de usufruir as bênçãos.

Notas
[1] Exemplos de igrejas históricas são Batistas, Presbiterianas, e Pentecostais clássicas são as Assembléias de Deus, embora a nomenclatura seja falha, pois há históricas e pentecostais debandando-se para o neopentecostalismo.
[2] Exemplo clássico de igreja neopentecostal é a Universal do Reino de Deus IURD. No entanto, a despeito do uso da palavra igreja, não considero igreja evangélica, pois a própria igreja evita tal identificação.